Beaujolais – O patinho feio se transforma em cisne.

Por 24 setembro, 2021 1 Permalink

Beaujolais – O patinho feio se transforma em cisne

A história do vinho em Beaujolais começa no século VII, quando os romanos introduziram as uvas viníferas na França.

No sec. XIV a região acolheu como sua uva principal a Gamay, que fora expulsa da Borgonha por Felipe, o Bravo.

Entre idas e vindas, ficou famosa pelo fenômeno mundial do Beaujolais Nouveau. Mas entrou no sec. XXI como terra de vinhos de pouca qualidade.

Nos últimos anos Beaujolais foi alvo da atenção tanto de jovens viticultores quanto de produtores afamados. Recebeu investimentos massivos, e presenciou refinamento e sofisticação de seus vinhos.

Tudo isso turbinado pelos preços estratosféricos de sua vizinha, a Borgonha, e o enorme interesse do mercado asiático.

Hoje seus vinhos são modernos, apresentam um incrível nível de qualidade, são fáceis de beber, relativamente baratos e já estão prontos para consumo, sem exigir maiores preocupações com guarda ou evolução em garrafa.

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Em Contexto

Monte Brouilly onde acampavam os romanos

Localizado justo ao sul da Borgonha, aparentemente Beaujolais entraria na lista de “melhores destinos” dos generais romanos empenhados na conquista da Gália. Reza a lenda que os crus* Bruilly e Julienas foram batizados em homenagem a Brulius e Júlio Cesar, respectivamente, que teriam escolhidos estes locais para montar seus quarteis generais nas campanhas de conquista da França.

Mas foi a partir de 1395 que a história vitivinícola de Beaujolais começa a se definir. Mais precisamente quando o duque Filipe, o Bravo, que reinava sobre a Borgonha (então um território independente), proibiu o uso da Gamay, acusando-a de “cepa vil e desleal”, inapta para produzir vinhos elegantes e capaz de fazer mal à saúde humana.

Enquanto uns afirmam que o duque estava protegendo a Pinot Noir, que produzia vinhos mais finos, já com bastante prestígio na época, outros veem uma tentativa de arrecadar mais tributos, impedindo o avanço sobre as áreas produtivas de uma uva que tinha maior rendimento, amadurecia mais cedo, mas gerava um produto de menor valor.

De qualquer modo, o fato é que a Gamay refugiou-se em Beaujolais, e finalmente achou um lugar para chamar de seu. Hoje domina aproximadamente 98% do território vitivinícola da região (os outros 2% são majoritariamente de chardonnay).

Beaujolais Conquista o Mundo

Ao longo da primeira metade do século XX Beaujolais construiu a imagem de um bom custo-benefício (barato sem implicar em má qualidade).

Enquanto a Borgonha seguia um caminho mais (digamos assim) elitista, Beaujolais caía no gosto popular apresentado vinhos agradáveis, descomplicados, do tipo desarrolhe e divirta-se. Prontos para serem bebidos jovens enquanto seus competidores exigiriam maior tempo de maturação em garrafa. 

Seguindo esta tendência, no final dos anos 1960 era moda em Paris experimentar o Beaujolais Nouveau, i.e. o vinho feito a partir da safra do ano de seu lançamento.

Tornaram-se grandes as festas e eventos promovidos na terceira quinta-feira de novembro, para que todos bebessem juntos e confraternizassem brindando: “Le Beaujolais Nouveau est arrivé!”

Daí resolveram estender as comemorações para todas as partes do mundo, como um réveillon fora de época. Era um monumental desafio de produção (colheita, vinificação e engarrafamento) e distribuição logística para que caixas e mais caixas de Beaujolais Nouveau estivessem prontas para serem abertas no primeiro minuto da terceira quinta-feira de novembro em Paris, Londres, Nova Iorque e onde mais houvesse uma taça vazia.

Nos anos 1980 fenômeno Beaujolais Nouveau conquistou o mundo, tornando a região de Beaujolais conhecida mundo afora.

A Ressaca

Para que o fenômeno Beaujolais Nouveau pudesse acontecer foi necessário priorizar o volume da produção e optar por processos de vinificação mais rápidos e de curta fermentação.

Ocorre que no mundo do vinho pressa e excesso na produção são vetores que quase sempre apontam na direção contrária da qualidade.

O resultado é que o mercado foi infestado com produtos de pouca qualidade. E Beaujolais ficou marcado como um vinho medíocre, com sabor grosseiro de tuti-frutti e indesejáveis aromas de banana, que normalmente decorrem de uma maceração carbônica** pouco cuidadosa.

O que era reverenciado pela boa relação de custo-benefício, principalmente a partir dos anos 1990 passou a ser medido só pelo custo. E foi assim que Beaujolais conquistou o estigma de um vinho ordinário, como um vinho de mesa qualquer.

Em 2002, o crítico François Mauss, fundador do Grand Jury Européen***, chegou a afirmar que muitos dos vinhos de Beaujolais sequer deveriam ser considerados vinhos de verdade e que muitos produtores tinham consciência de comercializar um “vin de merde”****.

Apesar de toda a sua tradição e história Beaujolais caia na categoria de vinho barato.

O Pêndulo Oscila

Beaujolais entrou no sec. XXI desacreditado. Ao mesmo tempo sua vizinha, a Borgonha, multiplicava seu prestígio de vinho fino, caro e raro. A demanda só aumentava e os preços subiam vertiginosamente, atingindo patamares sem precedentes.

E como o custo da terra está intimamente ligado ao preço do vinho, produzir na Borgonha era cada vez mais custoso e aumentar a produção se tornava proibitivo. Em Beaujolais a inflexão era em sentido contrário.

A terra barata começou a atrair jovens produtores, cheios de novas ideias e técnicas modernas, mas também grandes nomes da Borgonha como Jadot, Louis Latour, Joseph Drouhin, Bouchard Aine, entre muitos outros, que passaram a investir pesadamente na região. 

O que se viu nos últimos anos foi uma verdadeira revolução: profundas mudanças nos processos de vinificação, investimentos em tecnologia, pesquisas de solo, cuidadosa seleção das videiras, aperfeiçoamento das técnicas de cultivo, uso mínimo (ou nenhum uso) de defensivos agrícolas, respeito ao terroir e consciência das demandas de um mercado cada vez mais competitivo.

É assombroso o salto de qualidade em Beaujolais, principalmente na última década (nos Crus em particular). Não seria exagero dizer que a região nunca produziu vinhos tão bons. Em sua maioria frescos, alegres, ricos em fruta, delicados e prontos para consumo ainda jovens. Mas não só isso, hoje também há uma boa oferta de Beaujolais mais estruturados, com múltiplas texturas e complexidades, aptos a serem considerados vinhos de guarda.

O que era o patinho feio vem se transformando em um vistoso cisne pelas mãos de talentosos vinicultores.

Guardadas as devidas proporções, a região vem se tornando uma alternativa à Borgonha e seus preços estratosféricos. “Un vin qui pinote”, é a expressão utilizada para bons Beaujolais que apresentam características típicas da Pinot Noir, uva dos vinhos da Borgonha.

Apesar de não ser propriamente um elogio dizer que, quando bem trabalhada, a Gamay “pinoteia” dá para perceber como seus vinhos, relativamente baratos, podem entregar prazer comparável aos borgonhas.

A tendência, contudo, é que os preços subam rápido, aquecidos em grande parte pelo mercado asiático.

A fruta, a leveza e o frescor de Beaujolais favorecem a harmonização com pratos da culinária asiática tanto aqueles suaves quando os mais condimentados, por vezes, apimentados.

O Japão é o maior consumidor de Beaujolais Nouveu atualmente

Apesar de não haver uma consolidação oficial, os números apontam um crescimento constante das vendas para a Ásia. Especialistas relatam um aumento de aproximadamente 40% das exportações para a China em 2019, seguido por um acréscimo de 9% do preço. Algo em torno de 90% da produção atual de Beaujolais Nouveu é destinada ao Japão.

O primeiro semestre de 2020, turbinado pelas políticas restritivas do governo Trump, assistiu um incremento nas exportações para Ásia de 77%, na comparação com o ano anterior. E os preços naturalmente seguem pressionados pela demanda.

Apesar do reposicionamento de mercado, a relação de custo-benefício voltou a ser recompensadora e talvez seja um ótimo momento para conhecer os Crus de Beaujolais.

Aliás, esta é mais uma vantagem de Beaujolais, com apenas 10 crus e estilos razoavelmente bem definidos, é fácil (e divertido) perceber as diferenças e escolher o que mais agrada ao seu paladar. A tabela abaixo representa, em linhas gerais as diferenças de estilos dos crus de Beaujolais, lembrando que se tratam de vinhos de corpo médio/leve e de paladar mais sutil:

Os diversos Crus de Beaujolais

Em síntese, Molin-À-Vent, Morgon e Juliénas são mais intensos e potentes; Brouilly, Cotes de Brouilly e Régnié volumosos em boca e ricos em fruta, já Fleurie e Saint-Amour os mais delicados e perfumados.

As classificações Beaujolais, Beaujolais Village e Beaujolais Nouveau podem ser produzidas em qualquer parte da região e, portanto, não devem ser consideradas como Cru, já que este é vinculado a uma localidade específica do território em razão de suas características particulares.

Uma confissão

Durante muito tempo nutri desconfiança de Beaujolais. Afinal, se a expressão corrente diz que o bom Gamay é aquele que “pinoteia”, melhor ir direito para a Pinot Noir, sem perder tempo com outra uva.

Devo confessar que ultimamente tenho curtido muito os Crus de Beaujolais. A Gamay bem trabalhada, sim, possui características semelhantes à Pinot Noir, mas também personalidade própria, apresenta uma fruta generosa que raramente se encontra nos vinhos da Borgonha.

Encontrei nos Crus de Beaujolais vinhos estruturados, de ótima qualidade e boa complexidade, prontos para serem bebidos com pouca idade e economicamente acessíveis.

Notas:

* Área demarcada dentro de uma região vitivinícola maior e que se destaca em razão de suas qualidades extraordinárias.

**Maceração carbônica é um processo de fermentação por meio do qual os cachos inteiros são colocados em tanques herméticos, preenchidos com dióxido de carbono e sem a presença de oxigênio. Neste ambiente a fermentação ocorre primeiro dentro do bago, que acaba se rompendo, e continua a partir do contato do mosto com as leveduras nativas da fruta.

Este tipo de extração gera vinhos leves, de cor suave e expressão frutada. A crítica a este tipo de técnica aponta que em geral o resultado são vinhos de pouca personalidade, de baixa acidez, sem complexidade e compostos químicos com características aromáticas também encontradas em bananas e chicletes.

*** O Grand Jury Européen é uma associação sem fins lucrativos que se destina a oferecer uma classificação alternativa dos vinhos europeus, opondo-se às classificações oficiais.

**** O caso foi parar nos tribunais em uma ferrenha disputa entre os produtores de Beaujolais e o Lyon Mag que publicou o artigo. Em uma reviravolta no final as cortes francesas afastaram o pedido de indenização. Para mais informações sobre o caso: https://www.decanter.com/wine-news/vin-de-merde-case-closes-in-favour-of-freedom-of-speech-97115/

1 Comment
  • Érica Ambiel Pires Matsuo
    setembro 24, 2021

    Excelente artigo Diogo, quantas histórias e boas informações. Obrigada. Abraço, Érica

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